sábado, 10 de maio de 2014

A ficcionalidade e semântica do texto literário

A ficcionalidade e semântica do texto literário

A ficcionalidade é um conjunto de regras pragmáticas que prescrevem como estabelecer as possíveis relações entre o mundo constituído pelo texto literário e o mundo empírico. E constitui uma propriedade necessária para a existência do texto literário.
A ficcionalidade a nos textos literários manifesta-se a dois níveis: no nível de enunciação e no nível dos referentes textuais.
No nível de enunciação, o autor textual e o narrador não são co-referenciais com o autor empírico e produzem textos que não depende de um contexto, ou situação actual. E a nível dos referentes textuais, os referentes textuais não preexistem ao texto literário, não lhe são anteriores nem exteriores, sendo instituídos pelos enunciados do próprio texto. Os referentes dos textos literários, constituem objectos de ficção ou seja não existem no mundo empírico e, não são factualmente verdadeiros. Contudo, entre os referentes literários pode figurar objectos que têm, ou tiveram, existência no mundo empírico, por exemplo, a cidade de Lisboa n Os Maias.
Mas os códigos de certos subgéneros literários, como o romance e o drama históricos, comportam como convenção indispensável a representação de personagens que tiveram existência historicamente comprovada, as quais, no mundo possível da obra literária, coexistem e convivem com personagens puramente ficcionais, e de eventos historicamente ocorridos, que naquele mundo, se cruzam e misturam-se com acções também puramente ficcionais. Mas estes objectos que tiveram existência historicamente comprovada, quando dentro do mundo textual, adquirem o estatuto ficcional, não podendo ser exactamente identificados como referentes empíricos e históricos.
Do ponto de vista filosófico, os objectos ficcionais não podem ser julgados verdadeiros ou falsos de acordo com o conceito que exige a correspondência das proposições com a realidade, mas podem ser julgados verdadeiros ou falsos em função dos enunciados dos textos literários em que aqueles objectos ocorrem.
E tudo no texto literário, só pode ser verdadeiro ou falso, se o narrador assim o afirmar. Uma vez que ao se analisar o problema da verdade num texto literário, as palavras do escritor instituem uma verdade que pode ser explicada, mas não verificadas, porque essa verdade existe nessas palavras, num discurso semanticamente orgânico e autónomo.
Mas a pseudo-referencialidade não implica uma total ruptura com o mundo empírico, mas sim, suspende-a. Pois certos códigos literários, tendem a aproximar estreitamente o mundo possível do texto literário e o mundo empírico, por exemplo: o realismo, que tem como regra, a representação objectiva e verista do real. E em contra partida, o código da literatura fantástica, tende a acentuar a diferenciação entre os dois mundos, o ficcional e o empírico. No entanto, tanto na literatura fantástica assim como a literatura realista, existe sempre uma estrita correlação com o mundo real, correlação essa que pode advir de uma modalidade metonímica com uma modalidade metafórica, que tanto pode apresentar-se sob espécie de uma fidelidade mimética como sob a espécie de uma deformação grotesca ou de uma transfiguração desrealizante. É esta correlação semântica do texto literário com o real, que muitos autores, afirma que uma verdade no texto literário não se funda com a verdade no mundo empírico.

O texto literário como um mecanismo semiótico que em virtude das características da sua forma de expressão, da sua forma de conteúdo e do seu estatuto comunicacional, apresenta estruturas semânticas peculiares e tem capacidade de produzir no processo de leitura, tanto sincrónica como diacronicamente, novos significados.

Bibliografia
Aguiar e Silva. V.M. (1984). Teoria da Literatura, 6ª edição. Coimbra. Livraria Almedina.
      pp. 639-654



De: S. Chisseve

contacto: chissevesergio@gmail.com

Alguns aspectos convergentes e divergentes da cultura moçambicana

Índice






1. Introdução


A área com cerca de 799 380km², actualmente correspondente ao território moçambicano, surge no contexto da ocupação colonial. Foi por essas alturas que as potências europeias (movidas por razões de ordem económica) promoveram nos finais do século XIX a Conferência de Berlim (1884 – 1885), na qual se materializou a partilha de África de forma arbitrária. Assim afirmamos porque aquando da concretização dos seus interesses (que viriam a terminar com a ocupação efectiva), os ocidentais não consideraram as fronteiras culturais, etnolinguísticas, económicas, geográficas, políticas e/ou tradicionais africanas, dividindo deste jeito diversas estruturas sociais.

É precisamente neste cenário que surge um Moçambique multilinguístico e multiétnico, isto é, formado por povos que partilham línguas, hábitos e costumes diferentes num mesmo espaço físico-geográfico. Mas apesar desta partilha acontecer dentro da mesma fronteira, se por um lado, no que tange a cultura, os diferentes grupos étnicos existentes no país comungam diversos traços culturais, por outro, os traços culturais diferem-se.

Motivados pela necessidade de compreendermos o fenómeno cultural moçambicano, o presente trabalho, que se insere no âmbito da disciplina Literatura e Cultura Moçambicana, cujo tema é Cultura Moçambicana: Aspectos Convergentes E Divergentes Da Cultura Moçambicana Multiétnica E Multilinguística, visa analisar os aspectos convergentes e divergentes da cultura moçambicana em “Quenguelequezê”, poema de Rui de Noronha, “Balada de Amor Ao Vento” e “Niketche”, romances de Paulina Chiziane. A primeira análise vai opor “Quenguelequezê” da “Balada de Amor Ao Vento”, na qual mostraremos (i) como o rito de nascimento acontece em cada texto e, em “Niketche”, (ii) como a instituição casamento é concebida em dois espaços culturais diferentes, focando a atenção a reacção das mulheres perante este fenómeno.

Portanto, o trabalho terá dois momentos essenciais: o primeiro tem a ver com a busca dos principais conceitos relacionados com o tema em estudo enquanto o segundo será destinado a análise propriamente dita.

Eis a estrutura do trabalho: Breves considerações sobre as noções de Literatura, Cultura e multilinguismo; Alguns aspectos convergentes e divergentes da cultura moçambicana, A celebração do ritual de nascimento em “Quenguelequezê” e “Balada de Amor Ao Vento”; Como é que as mulheres do sul e do norte de Moçambique se portam antes e durante o casamento?; Conclusão e Referência bibliográfica.

 




 

2. Breves considerações sobre as noções de Literatura, Cultura e multilinguismo 

2. 1. Noção de Literatura


A intenção de encontrar um conceito referencial de literatura, enquanto ciência, com métodos, objectos e objectivos próprios, é marcada de contradições e repulsas ao longo da história literária. Pois, nem as tentativas de definição biográfica de literatura de Saint Beuve, historicista de Hippolyte Tain, formalista dos Formalistas Russos, institucional/funcional defendida, por exemplo, por Stanley Fish, conseguiram vincar. Isto acontece porque, no entender de Todorov (1978: 25), para além da utilização da linguagem não existe nenhum elemento extensivo e exclusivo dos textos literários, o que faz com o que se encontra em obras literárias possa também ser encontrado em obras não literárias.
Por isso, neste estudo iremos nos preocupar com literatura enquanto uma manifestação artística, um texto verbal com lacunas que devem ser preenchidas pelo leitor para que possam fazer algum sentido.

 

2. 2. Noção de Cultura


De acordo com Siliya (1996: 33), “o homem cria cultura no seu relacionamento permanente com a natureza” − esta ideia também nos é sugerida por Martins (2001).
Para Siliya e Martins a cultura parece ser um produto natural, no entanto, sem o ambiente social circundante ao homem, ainda que haja um relacionamento entre este e a natureza, entendemos nós, não pode haver cultura.
Como se a ampliar aquela noção, Lima, Martinez e Filho (1991), definem cultura como tudo o que recebemos, transmitimos ou inventamos. Por exemplo, uma adivinha, um conto, o respeito pelos mais velhos, as regras, os hábitos/costumes, a língua, e etc., constituem cultura. Daí afirmarem: para além de cultura ser o conjunto de tradições e herança social, é tudo que o homem acrescenta à natureza humana.
Esta noção dual, que realça o factor natural e social do Homem, leva-nos ao seguinte posicionamento: a cultura é um conjunto de artefactos materiais e psicológicos que o Homem (re)produz, transmite e inventa, no meio social, como forma de vencer as suas necessidades e/ou as suas limitações biológicas/físicas.

2. 3. Noção de Multilinguismo

Dubois e tal (1978: 470), usam a noção multilinguismo como sinónimo de plurilingue. Assim, de acordo com aqueles autores, multilingue refere-se aquele falante plurilingue. Melhor dizendo, “diz-se que um falante é plurilingue quando utiliza no seio de uma mesma comunidade várias línguas conforme o tipo de comunicação (em sua família, em suas relações sociais, em suas relações com a administração, etc.). Diz-se de uma comunidade que ela é plurilingue quando várias línguas são utilizadas nos diversos tipos de comunicação”. Logo, multiétnico refere-se a uma sociedade composta por várias etnias[1]. Como é o caso de Moçambique  

3. Alguns aspectos convergentes e divergentes da cultura moçambicana


Numa intervenção concedida ao IV Encontro de Professores de Literaturas Africanas, está evidente que Lourenço do Rosário defende que a literatura moçambicana tem um lugar, enquanto veículo de valores culturais, quer dizer, a literatura é um espaço de debate, de questionamento e de reflexão dos hábitos e de costumes tradicionais. Porque cremos na veracidade dos argumentos de Rosário (2010), trataremos dos aspectos convergentes e divergentes da cultura moçambicana tendo como foco três textos literários da literatura moçambicana:  “Quenguelequezê”, poema de Rui de Noronha, “Balada de Amor Ao Vento” e “Niketche”, ambos os romances de Paulina Chiziane, uma vez que parecem apresentar elementos elucidativos sobre a diversidade multilinguística e multiétnica da cultura moçambicana.

3. 1. A celebração do ritual de nascimento em “Quenguelequezê”[2] e “Balada de Amor Ao Vento”


Um dos vários aspectos de convergência entre os diversos grupos etnolinguísticos existentes em Moçambique é a prática dos rituais em determinados estágios de evolução física e mental do ser humano. Referimo-nos aos seguintes rituais: nascimento, iniciação, matrimónio ou fúnebre. Não obstante, embora os rituais mencionados façam parte – podemos assumir – de todas as etnias do país, a maneira como cada comunidade ou grupo levará a cabo é diferente. A seguir, revelaremos as semelhanças e as diferenças concernentes ao rito de nascimento, nos textos já identificados.

No poema de Rui de Noronha, “Quenguelequezê”[3], o sujeito de enunciação apresenta-nos um “cenário” em que se concretiza o ritual de nascimento. Neste poema, o ritual é levado a cabo entre cânticos e danças e, “Como se fora em brando e afogado leito/ Deitaram a criança, rebolando-a,/ Em cima do monturo”, sendo que no auge da cerimónia a criança é apresentada à lua longe dos cuidados paternos. Aliás, porque o ritual de nascimento tem uma extrema importância simbólica na vida dos que nele acreditam e praticam, pois é graças a este ritual que (de acordo com o texto, só pode ser orientado pela mulher mais idosa da comunidade) já adulto, a criança pode ser perspicaz, intrépido, inteligente e forte. Por isso, o pai da criança só regozija depois de cumprido integralmente o ritual porque assim antevê um futuro brilhante para o filho e, consequentemente, para si próprio, através da personalidade do filho. As seguintes passagens extraídas de “Quenguelequezê” quando o pai tem finalmente o contacto com filho, são ilustrativas, vejamos:

“Meu filho, eu estou contente!
Agora já não temo que ninguém
Mofe de ti na rua,
E diga, quando errares, que tua mãe
Te não mostrou à lua!
Agora tens abertos os ouvidos
Para tudo compreender;
Teu peito afoitará, impávido, os rugidos
Das feras, sem tremer…
Meu filho, eu estou contente!
Tu és agora um ser inteligente,
E assim hás-de crescer, hás-de ser homem forte

Até que já cansado
Um dia muito velho
De filhos rodeado,
Sentindo já a dobrar-se o teu joelho
Virá buscar-te a morte…
Meu filho, eu estou contente!
Agora, sim, sou pai!...”[4]




Como podemos notar, na passagem acima há uma entidade textual que se jubila com o nascimento do filho não revela, antes pelo contrário, enfatiza orgulhoso no último verso que é pai porque um acontecimento importante materializou-se com sucesso. Parafraseando, a entidade textual sente-se pai no momento em que o filho passa por todo o ritual de nascimento e não quando nasce, pois, sem apresentação da criança à lua, repetimos, pela senhora mais idosa da comunidade, de nada vale a vida.

Há aqui um simbolismo cultural intenso que comprova que a literatura realmente é um espaço de debate, de questionamento, de reflexão dos costumes tradicionais/culturais de uma sociedade, mas também de aprendizagem e conservação indubitável desses costumes.
O indivíduo do grupo etnolinguístico ronga que for a ler “Quenguelequezê” pode, sem receio algum, identificar-se com o ritual e com a forma como aparentemente esse ritual é desenvolvido. É o nosso caso. Por isso (re)vivemos a passagem “Olha é tua” (p. 27) como se a lua do poema também nos pertencesse.

Em relação à “Balada de Amor ao Vento”, primeiro romance de Paulina Chiziane, o qual gira em torno da estória amorosa de Sarnau e Mwando, personagens que depois de se separarem diversas vezes veriam a terminar juntos nos “labirintos” de Mafalala, o rito de nascimento também é um acontecimento a ter em conta. Sem nos centrarmos no universo diegético em si, mas na passagem em que constatamos o ritual de nascimento, capítulo 11, explicaremos como acontece.
Logo a partida, no capítulo 11 do romance em causa está evidente a celebração do ritual do nascimento. À semelhança do que acontece no poema acima analisado, o ritual nesse romance também inicia de forma especial “Kenguelekezêêê!...” que se ao nível semântico converge com o outro texto, ao nível da ortografia diverge.

Em a “Balada de Amor ao vento” o ritual de nascimento que devia se realizar durante a lua nova, realiza-se na lua cheia por se tratar do filho do rei, e a apresentação do recém-nascido à lua é motivado pelo facto de se pretender livrá-lo de diarreias, doenças nervosas e ataques durante o longo período de vida em que a criança estará sujeita às diversas metamorfoses. Este ritual é orientado pelas madrinhas da criança à volta de uma fogueira sagrada, na qual, para além da apresentação da criança à lua, dançando, administram fumos e drogas com o objectivo de afugentar feitiços e maus-olhados. Neste processo, não se escusam as vacinas, amuletos e colares de pele de leão, de modo que futuramente o miúdo possa ser corajoso e determinado como o leão é. Há por detrás destas todas peripécias uma crença na qual os tsongas (Marrongas, machanganas e matwas) se espelham na construção de um futuro individual e, consequentemente, colectivo na medida em que não deve haver indivíduo sem colectivo – porque o Homem é por essência um ser gregário, já o sabemos – e colectivo sem indivíduo. Mas o que há de comum entre estes dois textos no concerne ao rito de nascimento e como é que as divergências se explicam à luz de uma sociedade multiétnica e multilinguística?

Começando por responder a primeira pergunta, em ambos os textos quando a criança nasce celebra-se o rito de nascimento que consiste em o recém-nascido ser apresentado à lua de modo que a sua vida possa ser o que a comunidade almeja a qualquer membro que nela integra; em ambos os textos o ritual é dirigido por mulher(s) e os homens, inclusive o pai da criança, mantém-se distante da criança até que se cumpra integralmente o ritual; em ambos os textos o termo “Quenguelequezê” (Rui de Noronha) ou “Kenguelekezêêê (Paulina Chiziane) mais do que anunciar a lua nova, pretendem abrir as portas da vida ao recém-nascido; em ambos os textos o ritual é realizado entre danças e cânticos e à noite.

Ora, se em Noronha o ritual é celebrado pela mulher mais idosa da comunidade, em Chiziane desvaloriza-se a idade, são as madrinhas da criança que orientam o ritual. Para além da variedade ortográfica do termo, como já referimos, enquanto no primeiro texto o homem tem um papel secundário de cantar, no segundo o homem nem esse papel tem. Outra diferença está relacionado com facto de depois de a criança ser ostentada à lua, em “Balada de Amor ao Vento”, passar por um processo de vacinação e aquisição de amuletos e peles de leão com o objectivo de torná-la forte e corajosa − em “Quenguelequezê” tal fenómeno não é aparente.

Estas divergências acontecem porque, na nossa óptica, cada texto apropria-se de um universo de um determinado grupo etnolinguístico e étnico que mesmo sendo tsonga, nos dois casos, as diferenças linguísticas e tradicionais vão variar de acordo com o cronótipo que separa os dois grupos etnolinguísticos implicitamente identificados tanto em “Quenguelequezê” como em a “Balada de Amor ao Vento”. É pela diversidade linguística e étnica que o Moçambique possui que os textos literários, a dada altura, enquanto um produto que se não dissocia na cultura, apresentam aspectos convergentes e divergentes. Todavia, buscar dois textos literários não constitui a única forma de demonstrar estes aspectos. Num mesmo texto literário podem se encontrar vários elementos intrínsecos à diversidade cultural. Niketche, que a seguir analisaremos, é um exemplo a ter em conta.

 

3. 2. Como é que as mulheres do sul e do norte de Moçambique se portam antes e durante o casamento?


Lançamos esta pergunta em jeito de provocação. Se quiséssemos respondê-la, com efeito, à luz da realidade moçambicanidade, teríamos de fazer um estudo sociológico em vez de literário. O nosso interesse não é esse, mas sim, como fizemos menção na introdução deste trabalho, analisar os aspectos convergentes e divergentes da cultura moçambicana a partir de textos literários previamente mencionados. Para o efeito, neste ponto iremos nos focalizar nas falas de duas personagens de Niketche, pois oferecem-nos argumentos passíveis de responder a pergunta acima.   

O romance Niketche gira em torno dos melodramas que Rami, a protagonista da estória, vive quando Tony, o marido, relaciona-se com outras mulheres, repelindo-a a um plano secundário. Com o receio de perder o marido, Rami resolve dirigir-se a uma macua idónea no intuito de obter conselhos que a ajudassem a salvar o lar. É no diálogo destas duas mulheres que se registam algumas semelhanças e diferenças entre as mulheres do sul e do norte, e tudo surge da necessidade de Rami, representado metaforicamente as mulheres do sul, responder a pergunta feita por aquela que, também metaforicamente, representa as mulheres do norte, “Como foi a preparação do teu casamento?”. Respondendo a pergunta, Rami revela que as mulheres do sul, em vésperas de casamento, para além dos conselhos ligados à obediência e à maternidade que recebem da igreja e da família, nada mais aprendem nos dias que precedem o casamento. Por isso, a conselheira macua que Rami procura afirma à luz dos seus costumes: “Então não és mulher” – e diz mais – “És ainda criança. Como queres tu ser feliz no casamento, se a vida a dois é feita de amor e sexo e nada te ensinaram sobre a matéria?” Neste contexto, a menção aos ritos de passagem de adolescência para a juventude e de noiva para a esposa aparecem como factos distintivos entre as mulheres das duas regiões. 

Outras diferenças existentes entre as mulheres do sul e do norte como uma construção social encontramos ao longo da narração. Citamos: “No norte, as mulheres enfeitam-se com flores, embelezam-se, cuidam-se. No norte a mulher é luz e deve dar luz ao mundo” (p. 38). Mais adiante a narradora continua: no sul as mulheres vestem cores tristes, pesadas. Têm o rosto sempre zangado e cansado, e falam aos gritos como quem briga, imitando os estrondos da trovoada. Usam o lenço na cabeça sem arte nem beleza, como quem amarra um feixe de lenha. Vestem-se porque não podem andar nuas” (p. 38). Todas estas diferenças acentuadas entre as mulheres do sul e norte, de acordo com a conselheira macua, e que concorrem para que Rami não consiga gerir o seu lar, expondo-se a praticar um papel no lar que em vez de a favorecer, só a pode prejudicar, deve-se a falta dos ritos de passagem, instituição em que as mulheres do norte aprendem coisas relacionados ao amor, sedução, de maternidade, da sociedade, de convivência e acima de tudo as lições básicas de amor e sexo.
Mas não só existem diferenças entre as mulheres das duas regiões. Aliás, há diferenças porque existem semelhanças. As mais flagrantes que o romance oferece são:

Ø  De norte a sul os diferentes grupos etnolinguísticos, através de tabus, impendem que a mulher em período de menstruação aproxime-se da vida pública;
Ø  De norte a sul as mulheres deparam-se com tabus que as impedem de comer ovos com o pretexto de que terão filhos carecas e se portaram como galinhas poedeiras no momento do parto;
Ø  De norte a sul as mulheres são obrigadas a aceitar os mitos que as aproximam do trabalho do doméstico e afastam os homens;
Ø  Do norte a sul as mulheres são obrigadas a servir aos maridos os melhores nacos da carne, ficando para elas os ossos, as patas, as asas e o pescoço;
Ø  Do norte ao sul as mulheres são culpadas pelas calamidades naturais e outras intempéries.

Portanto, a forma como a mulher do norte e do sul prepara e vive o casamento é diferente, pois os hábitos e costumes que as orientam também são diferentes. Assim, pode-se afirmar que a diversidade étnica, que também se pode expressar a partir da diversidade linguística, é um factor que gera distinções culturais.

Para terminarmos, queremos dizer o seguinte: “as culturas são fronteiras invisíveis construindo a fortaleza do mundo” (p. 41).






 

 


 

 

 

 



4. Conclusão 


Numa sociedade multi-etnolinguística como Moçambique, a diversidade cultural é um fenómeno social irredutível. Para que se perceba a cultura moçambicana, antes é necessário que se consolide os aspectos concorrentes à convergência e a divergência de cada grupo etnolinguístico. Na impossibilidade de fazê-lo, neste trabalho nos dedicamos a analisar alguns aspectos que amiúde permitem relacionar determinados hábitos e costumes, através da literatura, por entendermos que é uma manifestação artística propensa a reflexão da cultura. E a conclusão a que chegamos é de que não existem fronteiras políticas ou geográficas que podem fazer com que as manifestações culturais de um país ou parte dele sejam as mesmas/diferentes.

Porque a cultura não é um património estanque, pelo contrário, por evoluir num determinado cronótipo, os hábitos e costumes desenvolvidos pelo Homem num determinado universo, tanto podem concorrer para aproximar uma etnia da outra como também para afastá-las. E mesmo numa mesma etnia, a uniformidade dos costumes não é fenómeno que se pode encontrar com muita facilidade, pois o Homem em si já é uma entidade diversa.

Tanto em “Quenguelequezê”, de Rui de Noronha, “Balada de Amor ao Vento” e “Niketche”, ambos de Paulina Chiziane, a cultura integra na essência dos textos como se pretendessem dar-se a conhecer aos leitores. Tal facto acontece porque a literatura está “umbilicalmente” ligada a cultura, e, por isso, funcionar como um veículo de transmissão e preservação dos costumes sociais. Há, portanto, uma relação recíproca entre a literatura e cultura e o Homem que as produz na tentativa de perpetuar imagens e imaginários que sirvam de itinerários às diversas gerações. 




5. Referência bibliográfica


Altuna, P. (1985) Cultura Tradicional Banto. Luanda: Secretariado Arquidiocesano de Pastoral.
Chiziane, P. (2008) Balada de Amor ao Vento, 4ª Edição. Maputo: Ndjira.
Dubois, J. et al (1973) Dicionário de Linguística. São Paulo: Editora Cultrix.
Lima, M., Martinez, B. e Filho, J. (1991) Introdução à Antropologia Cultural, 9ª Edição. Lisboa: Editorial Presença.
Lopes, A., Sitoe, S. e Nhamuende, P. (2002) Moçambicanismos: Para um Léxico de Usos do Português Moçambicano. Maputo: Livraria Universitária.
Matusse, G. (1998) A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. Maputo: Livraria Universitária.
Mendes, O. (1980) Sobre Literatura Moçambicana. Maputo: Instituto Nacional do Livro e do Disco.
Noronha, E. (2006) África Surge et Ambula: Rui de Noronha – Poeta Moçambicano. Maputo: Espaço Rui de Noronha Associação.
Rosário, L. (2010) O Lugar da Literatura Como Veículo de Valores Culturais Africanos – O Caso de Moçambique. IV de Professores de Literaturas Africanas. Belo Horizonte, Novembro de 2010.
Siliya, C. (1996) Ensaios Sobre a Cultura Em Moçambique. Maputo: ____________________
Todorov, T. (1978) Os Géneros do Discurso. Lisboa: Edições 70.

Outra fonte
Martins, D. (2001) O Estado Natural de Thomas Hobbes e a Necessidade de uma Instituição Política e Jurídica, site [acessed on Março de 2011].





[1] Grupo humano que apresenta características raciais, culturais e nacionais homogéneas (p.456).
[2] “Termo anunciador do aparecimento da lua nova no firmamento, ocasião em que se realizavam cerimónia de apresentação dos recém-nascidos (termo consagrado também na literatura por Rui de Noronha) como forma de lhes abrir as portas da vida. Significa ei-la (a lua)! O termo expressa o momento que se esperava com ansiedade e sem se saber exactamente quando aconteceria; sinal especial de esperança. Tradição entre marrongas, machanganes e matswas. Formal e informal” (Lopes, Sitoe e Nhamuende, 2002: 128).
[3] In Mendes (1980: 25 – 28).
[4] Sublinhados nossos.

A Ciencia de Deus e o Sexo das Borboletas ( analise)


Índice






Tema: “A ciência de Deus e o sexo das borboletas” de Daniel da Costa: Uma proposta para reflexão sobre o aspecto social moçambicano.

1. Introdução


O presente trabalho tem como tema: “A ciência de Deus e o sexo das borboletas” de Daniel da Costa: Uma proposta para reflexão sobre o aspecto social moçambicano.
E é motivado pelo facto de se ter constatado em alguns contos desta obra, que o aspecto social é representado de uma forma que choca com o jeito como é concebida pela maioria das comunidades moçambicanas e africanas no geral. O trabalho tem como objectivo procurar revelar e mostrar o papel desta obra na reconstrução do aspecto social moçambicano.
E tem como problema a seguinte questão: Qual é o papel desta obra na reconstrução do aspecto social moçambicano?
Segue uma abordagem indutiva, pois a partir de dois contos ira apresentar conclusão geral sobre a obra e terá como método de procedimento, o funcionalista, uma vez que procura explicar o papel que esta obra exerce na reconstrução do aspecto social moçambicano.
Espera-se que este trabalho contribua esclarecendo as mudanças pelas quais o aspecto social moçambicano está a passar.
O trabalho encontra-se organizado da seguinte forma: Primeira parte: Apresentação da obra, Resumo dos contos propostos para análise. Segunda parte: Enquadramento teórico, revisão da literatura. Terceira parte: Analise e interpretação da obra, conclusão e bibliografia.


1.1. Apresentação da obra

A obra “ A Ciência de Deus e o Sexo das Borboletas” de Daniel da Costa foi publicada em 2007, pela editora Ndjira. É uma obra composta por doze (12) contos, nomeadamente, “As regras de Ntemangau”, O vendedor de relâmpagos”, “O ladrão bom”, “O castigo da Rainha”, “O rato de aluguer”, “O cortejo das sogras”, “A gravata da Austrália”, “A rolha conjugal”, “Alô estádio da Machava”, “O homem que deixava as coisas a meio”, “A confissão” e “O sexo das borboletas”. E contém cerca de 104 páginas.

O presente trabalho centrará a sua análise em apenas quatro contos (3), nomeadamente, “As regras de Ntemangau”, “O ladrão bom” e “O cortejo das sogras”.

2. Resumo dos contos.

As regras de Ntemangau
O conto retrata o dilema de Soverina, residente em Ntemangau, onde para casar tinha como uma das regras principais engravidar do homem que se pretende casar e em seguida ir viver a casa dele de modo que o bebe nasça na casa deste. E Soverina ficou grávida e apaixonou-se pelo director do projecto, um branco, que viera para África no quadro de assistência técnica aos camponeses. Mas o bebe que Soverina esperava, não pertencia ao branco, pertencia sim a um jovem negro, residente em Ntemangau. E o dilema de Soverina resume-se no facto de ela amar um homem e estar grávida de outro.
O ladrão bom
Retrata a história de um homem que vê sua casa invadida por ladrões no meio da noite enquanto dormia, a casa continha um bom sistema de segurança e guarda. Os ladrões deixaram que ele acordasse e amarraram-no, torturaram-no, obrigando-o a dar informações sobre o dinheiro e outros bens valiosos que pudessem estar na casa, e caso não o fizesse ele seria morto. Mas antes, esvaziaram a casa, carregados todos os móveis presentes dentro da casa, incluindo a cama em que o narrador dormia. A tortura incluía queimaduras de ferro de engomar, cujo objectivo era obriga-lo a revelar os códigos dos cartões do banco, o homem deu os códigos certos, mas os assaltantes não acreditavam e ameaçavam-lhe queimar com o ferro, ate que de forma milagrosa um dos assaltantes ordena a cessação da tortura e retiram-se, deixando o homem imobilizado no chão.   

O cortejo das sogras
Retrata a história que um grupo de senhoras que ao receber a informação da morte de um político residente na mesma região, organizaram-se para ir prestar homenagem ao suposto morto e dar apoio a suposta viúva. Mas ao chegarem a casa do suposto deputado morto, deparam-se com um cenário que não sugeria luto naquela residência, e quem as recebe é a esposa do deputado, que fica indignada com a visita e o motivo da visita, e liberta os seus cachorros para que as senhoras possam se retirar de forma rápida.








3. Enquadramento teórico


Nesta fase do trabalho iremos debruçar sobre o conceito teórico que irá guiar o presente trabalho.
Falar de aspecto social é falar de sociologia, pois o aspecto social, para além de ser representado no âmbito dos estudos literários, é o objecto de estudo da sociologia, sendo assim, torna-se imperioso definir sociologia e deste modo incidir-se sobre o aspecto social.
Segundo Giddens (2001: 2), sociologia é o estudo da vida social humana, grupos e sociedade, e tem como tema de estudo o nosso comportamento enquanto seres sociais. Ora, se o autor afirma que a sociologia se dedica ao estudo da vida social humana, grupos e sociedade, entende-se logo que a sociologia dedica-se ao estudo do aspecto social, isto é, as relações entre o homem e a mulher, a família e a sociedade. E a forma como este se influenciam mutuamente.
Pode se afirmar que aspecto social é a forma de agir, de pensar ou sentir. Que pode ser individual ou de uma sociedade inteira. A forma como a sociedade concebe o casamento, o bem e o mal (ética), e como vê a morte, fazem parte daquilo que se considera aspectos sociais, e como estes conceitos e instituições influenciam no comportamento dos indivíduos e, como estes indivíduos influenciam na reconstrução destes conceitos e instituições.
Segundo o dicionário enciclopédico Alfa (1992:1106), sociologia é o estudo objectivo das relações que se estabelecem, consciente ou inconscientemente, entre pessoas que vivem numa comunidade ou num grupo social, ou entre grupos sociais diversos. Ora, de acordo com esta definição, entende-se perfeitamente que aspecto social é referente as relações, comportamento que uma sociedade tem, a forma de conceber o casamento é um aspecto social, a forma como é concebida a ética é também um aspecto social, bem como a forma que os indivíduos usam para propor mudanças na sociedade.
Sendo assim, entende-se como aspecto social tudo que esta inerentemente ligada a forma como os indivíduos se relacionam dentro de uma sociedade, e como uma sociedade se relaciona com outra sociedade.
É importante, deixar ficar a definição de alguns conceitos que serão usados neste trabalho, e citados acima, como por exemplo:
 Ética, que segundo do dicionário enciclopédico Alfa (1992:456), é uma investigação filosófica do comportamento do ponto de vista dos juízos de aprovação ou desaprovação do bom e do mau, do correcto e do incorrecto, do válido e do condenável. Casamento (p.230), é a união legítima entre homem e mulher. E morte (p.791), é a cessação da vida, no sentido figurado pode se entender como dor acerba ou pesar profundo.













4. Revisão da literatura


Nesta fase do trabalho, iremos debruçar-nos, no que toca ao que os outros autores disseram ou fizeram sobre o assunto em análise e sobre a obra.
No entanto, não sendo possível para nós, ter acesso a estudos feitos sobre a obra em análise, iremos socorrer-nos de outros texto que aborda sobre o aspecto social na literatura moçambicana.
Quive (2005), ao analisar a poligamia na obra “Niketche: uma história de poligamia” de Paulina Chiziane, tem como objectivo mostrar de que forma a autora representa ou retrata o fenómeno da poligamia na obra, tendo em conta o contexto cultural e social moçambicano. E chega a conclusão que, “o fenómeno poligamia é extremamente controverso, a dimensão conceptual deve ter em conta as diversidades do contexto cultural e social de cada sociedade, e a poligamia na obra é um reflexo nítido e critico de questionamento da tradição e da modernidade.” (p.32) Conclui ainda que, “a autora com esta obra mais do que defender os valores tradicionais da poligamia, procura estabelecer regras bem precisas, permitindo um equilíbrio social da mulher.” (p.33)
Nascimento (2003), ao analisar o aspecto social presente no conto a “A fogueira” de Mia Couto, foca-se na submissão da mulher em relação ao homem, e a relação que estes mantêm com a natureza e a visão deste povo em relação a morte. E afirma citado Tindó, que Mia “transporta para sua obra um modo novo de pensar a linguagem, a história de seu país e do mundo, como também os sentimentos e as emoções universais do ser humano.” (p.01)
Ora, Nascimento (2003) e Quive (2005), convergem no que toca ao objecto de análise, o aspecto social, tendo como principal alvo a mulher e a submissão desta em relação ao homem. Contudo, Nascimento foca-se, não só na submissão da mulher, mas também na relação que o homem e a mulher estabelecem com a natureza que os rodeia, enquanto Quive foca-se na função que a representação da poligamia exerce para a compreensão do sentido do texto, e na intenção da autora ao representar este fenómeno social, afirmando que a autora com esta obra pretende estabelecer regras para permitir o equilíbrio social da mulher.

5. Análise e interpretação

5.1. O aspecto social em “A ciência de Deus e o sexo das borboletas” de Daniel da Costa.


A nossa análise ira centrar-se em apenas quatro contos já descritos. E nesta fase do trabalho, iremos apresentar os aspectos sociais representados nos contos propostos para análise.
E a pergunta que se segue é: Que aspectos sociais estão representados nos contos propostos para análise?
Os aspectos sócias representados nos contos propostos para análise são o casamento, a violência doméstica, a submissão da mulher, a hipocrisia e a ética.
No conto “ As regras de Ntemangau, encontra-se representado o casamento, e são descritas as regras pelas quais se deve seguir até ao casamento, e durante a sua duração. E tem como principal alvo a mulher e o seu papel nesta instituição. A seguinte passagem textual ilustra claramente a afirmação: “ Nesse lugar, os homens são caçados, com base em três velhos e pobres passos.” (p.11) “ A primeira regra de Ntemangau é a seguinte: deixa-te engravidar na primeira ocasião em que fizerem sexo.” (…) Regra dois: o bebé deve nascer sob o tecto do futuro marido, esteja ele em casa própria ou dos seus pais.” (p.11). As duas regras acima citada dizem respeito aos procedimentos a seguir antes de se consumar o casamento e como se deve proceder até este se tornar real.
A citação a seguir ilustra a atitude que a mulher deve tomar durante a duração do casamento, ora vejamos, “… a terceira regra: uma vez em casa dele, não se sai mais de lá, a não ser no caixão”. (p.11)
Um outro aspecto interessante e intrigante é o facto de mulher antes do casamento engravidar do homem pelo qual está interessado, e depois disso, esta deve fazer o esforço para o bebé nasça na casa do provável pai, isto mostra claramente que o casamento representado no texto em análise é de certa forma movido por questões materiais.
Ainda neste conto encontra-se representado a violência doméstica contra a mulher, tal como ilustra o seguinte trecho:

“ –E a pancadaria, mãe?
-Oh a pancadaria! Estás mesmo preocupada com a pancadaria? Nem o vosso pai foi um homem diferente nisso (…) Também tens de aguentar. Tem de ser ele a abandonar-te.”
“…Maria, irmã mais velha de Soverina, tinha seguido à risca a fórmula de Ntemangau, mas não chegou a atingir o objectivo. Ficou-se pelas sovas e apanhou depois um derrame cerebral, quando sonhou que o marido se aproximava de novo, (…) Foi um estalo num dos hemisférios do cérebro o que a atirou de vez para uma cadeira de rodas.” (p.12-13)

E no conto “ O ladrão bom”, esta representado a ética, isto é, o bem e o mal. Neste conto, esta retratado o dilema pelo qual o narrador passa durante uma noite, na qual a sua casa é assaltada e ele fica a beira de ser torturado pelos ladrões, que também ameaçavam-no matar se não satisfazer as suas exigências. E apesar de ter ficado com casa despojada de todos os móveis, o narrador sentiu-se bem pelo facto de os ladrões não o terem torturado, tal como haviam prometido. Vejamos o seguinte trecho que abre o conto: “ Nem me devia atrever a dizer isto em público, mas aquele ladrão tinha um coração bom. (…) O patife não pode ser um santo, prejudica. Até chega a tirar a vida a outras pessoas, um assassino. Mas aquele era um ladrão especial, insisto. Sei que isto é controverso, …” (p.25)
A citação acima mostra um narrador ciente da polémica que as suas declarações podem suscitar, mas insiste em afirmar que o ladrão era bom. Poderíamos questionar: Quando é que podemos considerar que um ladrão é bom? Ora, a sugestão dada pela diegese, o ladrão é bom quando não tortura a vítima e nem mata-a, limitando-se apenas em retirar-lhe os bens materiais.
 No conto “ O Cortejo das sogras” encontra-se representado a falsidade, o fingimento, ou seja a hipocrisia. O conto retrata o percurso fúnebre, organizado por um grupo de senhoras, cujo objectivo era prestar homenagem a um suposto politico que havia sido dado como morto. E durante este percurso, são revelados os verdadeiros motivos daquele encontro. Tal como sugere o seguinte trecho:
 “A procissão ainda vai no adro (…)
Muitas delas não conheceram o falecido. (…) Se conheceu ou não, isso não interessa, (…), temos de nos ajudar umas à outras, especialmente em momentos difíceis como este, (…)
Mas todas ali sabiam no seu íntimo que o pico do que as juntava naquele cortejo ainda alegre eram as capulanas e os lenços, a secreta necessidade das comadres exibirem os trapos umas às outras, em renhido concurso de vaidades cujas raízes se podem facilmente associar à visão que determinadas sociedades matrilineares têm do lugar que a sogra ocupa no casamento da filha.” (p.48)
Neste texto, o fingimento é representado pelas sogras, pois, era suposto que as senhoras se reunissem naquele cortejo fúnebre, simplesmente para prestar homenagem ao político dado como morto e prestar apoio a viúva, mas o momento é aproveitado para exibir a sua vaidade e criticar a nova geração, tal como ilustra a seguinte citação: “Nos nossos tempos, comadre, não havia miúdos malcriados assim, despenteados e a fumar. Estariam em casa a fazer os deveres da escola. Mas, agora, se nem os próprios pais estão na linha, o que se lhes pode pedir?” (p. 47)
Neste trecho esta claramente ilustrada a hipocrisia, pois, notamos claramente que as senhoras para além de criticarem a nova geração, auto criticam-se, “…, se nem os próprios pais estão na linha”[1], com este trecho nota-se claramente a auto crítica, ora, se fazem menção aos pais dos miúdos, estão a assumir que elas como mães desses pais falharam com a educação dos seus filhos, formando-se deste modo um ciclo vicioso.

6. “A ciência de Deus e o sexo das borboletas” de Daniel da Costa: Uma proposta para reflexão sobre o aspecto social moçambicano.

6.1. O casamento, a ética e a morte na obra como proposta para reflexão

Depois de apresentarmos alguns aspectos sociais presentes na obra, a questão que se levanta é: Como é que a obra propõe a reflexão do aspecto social moçambicano?
A obra propõe a reflexão do aspecto social moçambicano, trazendo aspectos sociais que de certa forma deixam o leitor confuso, e intrigado. Vejamos o conto que por sinal abre a narrativa, isto é, “As regras de Ntemangau”, neste conto, notamos claramente uma forma característica de se conceber o casamento, forma essa que choca com o processo como é concebido o casamento na sociedade moçambicana. Na sociedade moçambicana patrilinear, assim como na matrilinear, a mulher só deve engravidar depois de se consumar o casamento, e não antes. Ora, no conto acima citado, vê-se uma inversão desta ordem, onde a mulher para que case é necessário que ela engravide antes do casamento é que a família deve fazer um esforço no sentido de colocar a filha engravidada na casa do suposto autor da gravidez. Este conto ao apresentar regras para se casar, vem propor um debate para reflectir sobre este aspecto social, o casamento.
 No conto “ O ladrão bom”, o titulo em si, já nos deixa de certa forma confusos e perplexos, e questionamos: quando é que podemos afirmar que um ladrão é bom? O conto de certa forma coloca essa mesma dúvida, ao apresentar-nos um narrador ciente da polémica que o seu depoimento ira causar no leitor, contudo, continua a afirmar que o ladrão pode ser bom. Como já foi deixado ficar anteriormente, o ladrão só pode ser bom se não torturar a vítima e se não mata-la. Apartir deste conto, o autor, vem propor um debate sobre ate que ponto algo pode ser mau ou bom, aceitável e condenável, etc., e neste aspecto estaremos a nível da ética.
No conto “ O cortejo das sogras”, encontra-se representado a morte, que a cessação da vida. Mas neste conto deve-se olhar a morte no seu sentido figurado, como pesar profundo, dor amargurada, angústia. No entanto esta morte, não é a sugerida pelas personagens representadas no texto. No texto, nota-se claramente personagens que em nenhum momento no desenrolar da narrativa revelam esse pesar profundo, a amargura e a tristeza. Verifica-se personagem mais interessadas em exibir a sua vaidade, e aproveitar o momento para regalar.
Sendo a sociedade moçambicana actual, ligada ao capitalismo e o capitalismo mantém uma ligação directa com o materialismo, verifica-se uma alteração de valores morais e institucionais. E o autor Daniel da Costa, através da sua obra “Ciência de Deus e o sexo das borboletas”, apresenta um mundo ficcional onde os valores sociais, morais e éticos, chocam com os preconcebidos. O que sugere que esta obra é uma proposta para o debate sobre os conceitos sociais, que devido as mudanças económicas, tecnológicas e não só, estão a sofrer mudanças, e há uma necessidade urgente de se rever e se reestruturar as normas que regem a sociedade moçambicana e não só.

 

 

 


 



7. Conclusão


Depois da analise dos contos propostos que fazem parte da obra “Ciência de Deus e o Sexo das borboletas” de Daniel da Costa, concluímos que com esta obra o autor ao representar o aspecto social na sua obra, construindo um mundo ficcional onde estes aspectos chocam com os preconcebidos pela sociedade. Procura propor um debate para reflexão do aspecto social moçambicano, uma vez que, devido as mudanças económicas, sociais, politicas e tecnológicas, tem se verificado mudanças em alguns comportamentos individuais e da sociedade inteira e sugere uma necessidade urgente de se rever as normas que regulam o comportamento dos indivíduos dentro da sociedade e da sociedade em relação a outra sociedade.
E este autor usa a literatura para espelhar essas mudanças que estão a se verificar na sociedade moçambicana, socorrendo-se da afirmação do crítico norte-americano Northrop Frye, citado por Nascimento (2003:01), que diz: “na literatura o ser humano é espectador da sua própria vida, ou, ao menos, daquela visão mais ampla dentro da qual a sua vida é contida.” Por isso,  que Mia Couto(2007), num texto de apresentação da obra disse: “Este “A Ciência de Deus e o Sexo das Borboletas” retoma aquilo que é uma vocação quase esquecida na nossa literatura: a de visitar o nosso quotidiano por via de um voo muito especial que se chama ironia.”

 







8. Bibliografia


Dicionário Enciclopédico Alfa (1992). Lisboa: Publicações Alfa


Costa, D. (2007) A Ciência de Deus e o sexo das borboletas. Maputo: Njira


Giddens, A.(2001) Sociologia. 4ª Edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian


Couto, M. (2007) Apresentação de “A Ciência de Deus e O Sexo das Borboletas”,de Daniel
      da Costa. Maputo-Teatro Avenida, no dia 13 de Setembro de 2007


Nascimento, L.M.M. (2003) O aspecto social presente em “ Vozes anoitecidas”, particularmente no
      conto: “ A fogueira” de Mia Couto. Documento online: www.publicações.unigranrio.com.br
      [acessado no dia 26 de Agosto de 2013]


Quive, J.V. (2005) A Representação da Poligamia em Niketche: Um pretexto para o questionamento da tradição e modernidade moçambicana. Maputo: UEM. Trabalho de Licenciatura (não publicada)



[1] O itálico é nosso.